Muitas pessoas estão questionando a
decisão do juiz Sérgio Moro de autorizar a divulgação pública de conversas
telefônicas do ex-presidente Lula, inclusive com a presidente, as quais revelam
implicações culposas e cumplicidade em várias atividades[1].
O que
João Calvino teria a dizer sobre isso? Para o reformador genebrino, quando um
governo se torna tirânico, é dever dos magistrados inferiores resisti-lo e até
destituí-lo:
“Porque ainda que a correção e o
castigo do governo desordenado seja uma vingança que Deus toma para si, nem por
isso se segue que no-la permita ou a ponha nas mãos daqueles a quem não há
ordenado senão obedecer e sofrer. Falo sempre de pessoas particulares. Porque
se agora houvesse autoridades ordenadas particularmente para defesa do povo e
para refrear a excessiva licenciosidade dos reis, como antigamente os
lacedemônios tinham os éforos opostos aos reis, os romanos tinham os tribunos
do povo frente aos cônsules e os atenienses aos demarcas frente ao senado, e
como pode ocorrer atualmente em qualquer reino... eu estaria longe de proibir
tais estados de se oporem ou resistirem, conforme o ofício que possuem, à
excessiva licenciosidade dos reis, pois se eles dissimulassem com aqueles reis,
que desordenadamente oprimem ao povo infeliz, eu afirmaria que tal dissimulação
deveria ser tida por uma grave traição. Porque maliciosamente, como traidores
de seu país, deixam o povo perder a liberdade, para cuja defesa e amparo devem
saber que foram colocados por ordenação divina como tutores e defensores.”(INSTITUTAS
DA RELIGIÃO CRISTÃ, LIVRO IV, CAP. XX, 31
Para evitar um processo revolucionário amplo que gere desordem e
violência, Calvino sugeriu que as outras instâncias do poder resistam à
tirania. Não se trata do controle de poderes mencionado por Montesquieu, pois
estamos falando de um despotismo que já suprimiu o equilíbrio entre os poderes.
É uma questão política, pois o governo tirânico já teria desfeito o Estado de
Direito através do poder e da corrupção. A visão do reformador, porém, idealiza
uma reação política mais próxima possível da ordem jurídica, evitando a
desordem maior e servindo-se de instâncias inferiores que contam com o apoio da
justiça e do povo.
Do ponto de vista do Direito
Positivo, a ação do juiz Sérgio Moro pode ser interpretada de várias maneiras.
Pode receber uma interpretação restrita (mais valorizada pelos penalistas) ou
receber uma interpretação mais ampla, tendo em vista a gravidade da situação
(essa mais valorizada pelos constitucionalistas). Do ponto de vista do Direito
Natural, como interpretado pelos calvinistas, o juiz agiu no papel que lhe
cabia, principalmente porque a publicidade objetivava obter a legitimidade
popular para os seus atos. O povo foi chamado a co-participar da resistência
aos desmandos do atual governo e de seus aliados através da magistratura.
Na época do puritano Oliver
Cromwell, o Parlamento, com o apoio do povo, resistiu ao rei despótico,
depondo-o. Foi um verdadeiro antecedente do impeachment.
A questão é a seguinte. Em um país
aparelhado, onde o STF tem sido lento, possuindo vários ministros ligados ao
PT, o juiz Sérgio Moro, isolado na luta jurídica pela justiça precisou de apoio
da instância mais baixa na estrutura governamental e mais alta (abaixo de Deus)
no poder de escolher e delegar: o POVO. Essa foi a razão da publicização das
gravações. Conforme disse ironicamente Lula: “Eles (PF e MP) se sentem enviados
de Deus”. Não sei de fato como se sentem, mas independentemente da fé que
professam, são agentes do juízo divino.
Como pregador anabatista,
mantenho-me longe da política partidária e das associações com cargos estatais
que comprometam a fidelidade à minha vocação e missão, mas não renuncio ao meu
papel profético. Não tenho o otimismo de alguns que imaginam que, removendo a
presidente, tudo vai melhorar. Da mesma forma não compartilhei o entusiasmo dos
que, elegendo o Lula, achavam que iam mudar o Brasil. A vigilância, a oração e
a pregação profética (livre de filiações partidárias e ideologias seculares) é
o único caminho seguro para o crente em Jesus Cristo. A interpretação de
Calvino, no entanto, para parece estar de acordo com a saúde institucional e o
bom senso, pois se todos (inclusive as crianças e os jovens) ficarem assistindo
pela televisão o triunfo da corrupção, sem que ela encontre resistência,
cauterizarão a própria consciência.
Convém observar que não defendemos
aqui uma ideologia econômica específica. Acreditamos que o liberalismo foi bem
sucedido na formação dos EUA (embora houvesse a chaga da escravidão negra) por
causa de fatores específicos ligados à cultura americana, como a moralidade
puritana e o associativismo comunitário (Aléxis de Tocqueville). A moralidade
impediu que a liberdade democrática se transformasse em libertinagem ou
anarquia, assim como o espírito congregacional das igrejas alimentou o
sentimento de solidariedade que temperou o individualismo estrutural,
impedindo-o de descambar para o egoísmo. Os EUA tiveram o privilégio de ser uma
nação fundada por protestantes perseguidos, unidos pelo amor a liberdade e pelo
sonho de fundarem uma nação exemplar.
Na Alemanha e na Dinamarca, por
outro lado, foi mais bem sucedido o Estado Social[2]
de inspiração luterana e pietista, enquanto a Inglaterra superou as injustiças da
revolução industrial por um Estado Social influenciado pelos brados proféticos
do Metodismo e do Exército da Salvação.
A nossa fé, portanto, não exige
adoção de um modelo fixo e determinado de política, mas apenas o respeito aos
princípios do Direito Natural. Com essa liberdade, podemos falar com voz
profética e independência.
“A igreja precisa ser lembrada de
que ela não é senhora ou serva do Estado, mas, sim, a sua consciência” (Martin
Luther King)
Dr. Glauco
Barreira Magalhães Filho
Mestre em
Direito, Doutor em Sociologia e Doutor em Teologia
Professor da UFC
[1]
É bom lembrar que Lula, independente de formalidades, participa efetivamente do
governo da presidente Dilma.
[2]
A denominação “Estado Social” foi popularizada na Alemanha pelo trabalho de
Hermann Heller e tem sido difundida no Brasil por Paulo Bonavides. O Estado
Liberal Clássico se estrutura na tensão Estado X Indivíduo, valorizando o
“homem isolado” e o livre mercado. O Estado Social vai além da polarização
Estado-indivíduo, ressaltando também a importância do “homem situado” e das instituições intermediárias
(família, universidade, associações profissionais, etc), na linha dos calvinistas Kuyper e Herman Dooyeweerd. Fomenta o federalismo socionatural (cooperativo), proveniente da lição de Althusius. O Estado Social, por outro lado, valoriza o livre mercado, mas o
limita por leis que impedem a concorrência desleal, protegem o consumidor e
reprimem o abuso do poder econômico, como foi sugerido por Martinho Lutero. Faz
apologia também (conforme Lutero) do ensino público gratuito e do sistema de
previdência social. Estabelece o direito de propriedade, mas limita o seu
exercício pela função social, como podemos encontrar nos escritos patrísticos e
de João Calvino. O Estado Social não é o “Estado Comunista”, que nivela todos
por baixo e não incentiva o crescimento meritório, nem é o Estado Assistencialista
das bolsas, cotas, relações de dependência e vitimização. O Estado Social é
orientado para emancipação do indivíduo e para a correção de injustiças
sociais..
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