domingo, 17 de fevereiro de 2013

HENRIQUE VIII, O PAPA E A REFORMA




INTRODUÇÃO

Henrique VIII, antes de se proclamar o Chefe da Igreja na Inglaterra, foi um católico romano fervoroso. Ele chegou mesmo a escrever um livro atacando as idéias de Martinho Lutero (A Defesa dos Sete Sacramentos), recebendo, por esse motivo, o título de “Defensor da Fé” do papa Leão X. Segundo o historiador Frank Dwyer, ele separou-se da igreja romana após ter sido “constantemente ludibriado e passado para trás por reis, papas e imperadores da Europa”.
Henrique VIII continuou católico após romper com Roma, razão pela qual a igreja anglicana conservava a dogmática romanista, tendo, porém, o rei como o seu chefe. Foi somente depois da morte de Henrique VIII que chegou plenamente a Reforma para a igreja da Inglaterra. Examinaremos aqui os eventos ligados à vida de Henrique VIII e a sua relação com a igreja romana. Em seguida, consideraremos a evolução posterior do anglicanismo.

HENRIQUE VIII E A IGREJA ROMANA

            Henrique VII (pai de Henrique VIII) prometeu casar Arthur (o seu filho mais velho e herdeiro legítimo do trono) com Catarina de Aragão (filha do rei Fernando da Espanha). O objetivo dessa união era selar a aliança entre seus pais (os reis da Inglaterra e da Espanha) contra um inimigo comum, o grande rei Luís XII, da França. O futuro filho do novo casal, por outro lado, poderia garantir a participação inglesa nos destinos da Europa.
            O casamento se deu em 04 de novembro de 1501. No cortejo que levava Catarina para a Catedral de São Paulo, onde se casaria com Arthur, estava Henrique (que viria a ser Henrique VIII), irmão de Arthur. Ele era cinco anos mais novo que Catarina.
            A mãe de Catarina era Isabel de Castela, uma mulher profundamente católica. Isabel tanto queria promover as luzes do Renascimento como as trevas da Inquisição. O rei Fernando (pai de Catarina), para não ser ameaçado pela França, casara as filhas com dois filhos de reis (o de Portugal e o da Inglaterra) e com a família do Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
            Em abril de 1502, houve a súbita morte de Arthur, irmão de Henrique e esposo de Catarina de Aragão. A rainha Isabel queria que Henrique substituísse Arthur, casando-se com Catarina. Os cânones da igreja, porém, baseados no Velho Testamento (Levítico 20: 21), não permitiam aquele enlace. O papa Júlio II, entretanto, politicamente interessado naquela união, deu autorização especial para o casamento. Em 1511, esse mesmo papa organizaria uma “Sagrada Aliança” com a Espanha contra o rei francês.
            O casamento de Henrique com Catarina deveria se dar quando ele tivesse 15 anos. Lembramos que Catarina era cinco anos mais velha que ele. Frank Dwyer observa que Henrique ficou em isolamento obrigatório até completar os 15 anos:

            “O isolamento do príncipe Henrique, no Palácio de Richmond, em Surrey, foi ainda mais severo do que o de Catarina. O menino era estreitamente vigiado por seu nervoso pai, que fazia todo o possível para manter a última esperança da linha Tudor...”[1]

            Um dia antes de seu 14o aniversário, o príncipe Henrique compareceu ao Conselho Privado (formado por assessores do rei) e repudiou secretamente a sua promessa de casar-se com Catarina. “Embora nem a Espanha nem Catarina soubessem disso até muito mais tarde, o contrato de casamento fora unilateralmente anulado pelos ingleses”(Frank Dwyer).
            Com a morte do pai, Henrique saiu do confinamento, tornando-se Henrique VIII e casando-se com Catarina, que tinha 23 anos. Nesse período, ele dividia a sua vida entre a igreja e o jogo. Chegava a ouvir até cinco missas por dia, ao mesmo tempo em que se divertia nos banquetes e nos jogos de dados e cartas.
            Quando o papa Júlio II fez uma aliança com a Espanha e Veneza contra o rei Luís XII da França, ele enviou uma bula secreta nomeando Henrique VIII rei da França caso aquele país fosse conquistado, enquanto o rei Fernando (Espanha) prometia ajudar Henrique a conquistar a Aquitânia, região francesa que já havia pertencido aos ingleses. Essas promessas eram condicionadas ao apoio de Henrique na luta contra a França. Henrique entrou na luta e teve destacadas vitórias, mas foi enganado tanto pelo papa como pelo rei Fernando.
            Henrique VIII firmou o Tratado de Lille com Fernando e Maximiliano, para, com o apoio deles, conquistar a França, mas foi novamente traído, pois, dez dias depois, ambos passaram a negociar secretamente com a França. Essa era a terceira vez que o pai de Catarina (esposa de Henrique VIII) traía o rei inglês. Ele mal podia acreditar.
            Dentro da Inglaterra, crescia o poder Thomas Wolsey. Ele era um padre ambicioso que conquistara várias honrarias, sendo finalmente Lord Chanceler da Inglaterra. A cada novo título, ele via crescer a sua fortuna. Em 1515, o papa Leão X nomeou Wolsey cardeal. Depois, ele foi nomeado núncio papal.
            Henrique VIII, revoltado com as traições da família de Catarina e, interpretando que o papa não poderia ter autorizado o seu casamento com ela, questionava a validade de seu matrimônio, desejando casar-se com Ana Bolena. O rei entendia ser um castigo divino o fato de Catarina não lhe ter dado um filho do sexo masculino, embora sentisse orgulho de sua filha Maria, a qual “nunca chorava”. Mais tarde, após a morte de Henrique VIII e de seu imediato sucessor, Maria reinaria tiranicamente sobre a Inglaterra. Ela procuraria levar a Inglaterra de volta ao catolicismo, martirizando muitos protestantes, e ficando conhecida como “Maria, a sanguinária”.
            Wolsey pretendia montar um tribunal secreto para anular o casamento do rei com Catarina, mas Carlos, o mais poderoso monarca da Europa, sobrinho de Catarina, não aceitaria tal coisa. Carlos também tinha o papa nas suas mãos. Em 1527, um exército alemão indisciplinado havia saqueado Roma e o papa, fugindo por um túnel que ia do Vaticano até a fortaleza do Castelo de Santo Ângelo, caíra nas mãos de Carlos. Wolsey, então, preferiu desfazer o tribunal secreto.
            Henrique enviou um pedido de anulação de seu casamento ao papa ao mesmo tempo em que Carlos defendia a causa de Catarina perante o papa Clemente. Wolsey defendia que a autorização que o papa Júlio dera para o casamento fora errônea.
            O papa Clemente, um esperto, usou todos os meios para protelar a decisão. Chegou mesmo a dar aos embaixadores de Henrique uma autorização para que este casasse com Ana Bolena, mas era um engodo, pois a autorização só teria efeito depois que o casamento com Catarina fosse declarado ilegal.
            Em 1528, a Inglaterra declarou guerra ao Sacro Império (Carlos). Por outro lado, o papa iniciou negociações de seu interesse com Carlos.
            O papa Clemente nomeou uma comissão geral com Wolsey e Campeggio para julgar o caso de anulação do casamento de Henrique na Inglaterra, sem haver apelação para o seu veredicto. Era uma nova cilada: a confirmação do veredicto papal não estava garantida.
            Na medida em que os exércitos de Carlos dominavam a Europa, o imperador obtivera do papa a promessa secreta de que a anulação do casamento de Henrique não aconteceria. Os melhores argumentos de Catarina eram os poderosos exércitos de seu sobrinho e o Tratado de Barcelona, que o papa assinara com Carlos.
            Henrique VIII terminou casando secretamente com Ana Bolena antes da decisão papal acerca da anulação de seu primeiro casamento. A oposição do papa ao novo casamento causou a ruptura da igreja inglesa com Roma. O parlamento inglês, então, reconheceu o rei como Chefe da Igreja da Inglaterra.
            O Parlamento inglês de 1529-1536 já vinha elaborando uma série de leis que vinham separando gradualmente os laços entre a Igreja Inglesa e Roma. Isso culminou no Ato de Supremacia (1534), que declarou o rei como “o único Supremo Cabeça na terra da Igreja da Inglaterra”. Era um retorno ao princípio medieval do “príncipe piedoso”.
            Depois de romper com o papado, Henrique VIII continuou defendendo a doutrina da transubstanciação e muitas outras doutrinas católicas. Ele perseguiu severamente os protestantes, bem como os católicos que não reconheciam a sua posição de chefe da igreja. Aos protestantes, ele dava a morte na fogueira, conforme a prática romanista. Entre os católicos mortos por Henrique, estava o seu ex-amigo Thomas More, o qual havia perseguido severamente muitos protestantes. Tony Lane observa que é difundida a falsa idéia de que o reformador João Calvino era um ditador em Genebra, mas a verdade é que Calvino nunca foi líder político em Genebra, enquanto Thomas More (tido como “santo”), sob a autoridade do ainda católico romano Henrique VIII, gerenciou forte perseguição e tortura contra muitos protestantes.
            Os protestantes da Europa não confiavam em Henrique VIII. Frank Dwyer observa:

            “Procurando aliados desesperadamente, Henrique fez alguns acenos para os líderes protestantes da Alemanha, que tinham se reunido na Liga de Schmalkalde. Mas os luteranos mostraram-se frios para com o monarca em perigo e que, afinal de contas, não era um verdadeiro protestante. Eles sabiam que o rei inglês não estava interessado em servir a nenhuma religião... Martinho Lutero chamara o divórcio de ‘um crime aos olhos de Deus’. ‘O senhor Henrique pretende ser Deus e fazer o que quiser’, observara Lutero com desdém.”
            “Enquanto o Parlamento, habilmente manobrado por Cromwell, tentava impedir a difusão do protestantismo radical na Inglaterra, Henrique, para garantir uma aliança, fingia estar cada vez mais interessado no luteranismo. Em maio de 1539, o Parlamento aprovou a  Lei de Seis Artigos, a codificação dos princípios básicos da Igreja Anglicana, que pôs fim às reformas luteranas na Inglaterra. A Igreja Anglicana mantinha a maior parte da doutrina católica; a diferença era que a Igreja inglesa seria chefiada pelo rei, não pelo papa. No conflito central entre o catolicismo e o luteranismo em relação à transubstanciação, Henrique aderia à posição católica de que o pão e o vinho da comunhão milagrosamente transformavam-se no corpo e sangue de Cristo durante a missa. Qualquer discordância dessa crença era sujeita a punição – Henrique não estava disposto a tolerar o protestantismo radical.”[2]

            Depois de uma sucessão de novos casamentos, em 12 de julho de 1543, Henrique VIII casou-se com a sua sexta esposa. Ela chamava-se Catarina Parr. Frank Dwyer comenta o seguinte sobre o fato:

            “Foi o casamento mais sensato que fez em sua vida. Catarina Parr era uma mulher extremamente boa, generosa e tolerante. Como resultado de seus persistentes esforços, os três filhos do rei reuniram-se na casa do pai pela primeira vez. Ana Cleves também ia ocasionalmente jantar com Henrique e Catarina. A nova rainha, uma protestante erudita, adorava as atividades piedosas. A corte de Henrique logo brilhou novamente com a alegre busca do conhecimento...”[3]

            Catarina Parr, com muito esforço, conseguiu reconciliar Henrique com as filhas (Maria e Elisabete). Ela passava muito tempo discutindo assuntos teológicos com o rei. O seu objetivo era persuadir Henrique a abraçar o protestantismo. Isso alarmou muitos clérigos. Carolly Erickson disse que “a sua dedicação à purificação da Igreja era persistente e sincera”.
            Catarina Parr e o seu círculo protestante conseguiram levar Henrique às primeiras iniciativas em direção à Reforma na Igreja Anglicana. Isso, entretanto, aconteceu em meio a muitas tensões e recuos de Henrique. O bispo de Winchester, Stephen Gardiner, um dos principais ministros de Henrique perseguia com violência os protestantes. Ele foi o responsável por Ana Askew ser queimada como herege. Askew, que tinha a simpatia das damas da rainha, foi queimada por não crer na transubstanciação. Gardiner chegou mesmo a acusar a rainha de heresia e persuadiu Henrique a assinar uma denúncia secreta contra ela. O rei, porém, mudou de idéia na última hora e tomou a defesa da esposa quando vieram prendê-la.

            REFORMA E RETORNO DO CATOLICISMO

            Henrique morreu em 28 de janeiro de 1547. Eduardo VI, o seu jovem e enfermo filho, tornou-se o rei. Ele foi considerado o primeiro monarca protestante da Inglaterra. Nessa época, a Igreja Anglicana aderiu à Reforma e formulou o Livro de Oração Comum. Pelo Ato de Uniformidade, ele aboliu o rito católico a favor do serviço protestante. Eduardo VI morreu logo de tuberculose, dando oportunidade de Maria (a sanguinária) ascender ao trono.
            Maria era católica e usou a posição de chefe da Igreja Anglicana para restaurar o catolicismo e promover uma sangrenta perseguição aos protestantes. Depois de seu governo, a Inglaterra criou uma aversão à idéia de retorno ao catolicismo.

            PROTESTANTISMO MODERADO E PURITANISMO

            Depois de Maria, Elisabete I, a Rainha Virgem, assumiu o trono. Essa foi a Era Dourada inglesa. Elisabete restaurou o protestantismo, mas numa via moderada.
            Em período posterior, houve novas concessões parciais à doutrina católica com Carlos I. A Revolução Puritana, porém, restaurou o protestantismo clássico de uma forma radical. Novas tendências católicas vieram quando os sucessores de Carlos I reassumiram o trono. Da Revolução Gloriosa até o Movimento de Oxford prevaleceu o protestantismo ortodoxo com variantes ocasionais. Até hoje dentro do anglicanismo, há tendências católicas herdadas de Henrique VIII (e de Maria, a sanguinária), tendências protestantes clássicas herdadas do período de Eduardo VI e tendências protestantes moderadas herdadas de Elisabete I. O liberalismo teológico, com o seu ceticismo e amoralidade, têm sido, porém, a grande ameaça dentro do anglicanismo contemporâneo.

            CARACTERÍSTICAS ANGLICANAS

            Embora o rei (ou a rainha) seja “o Chefe da Igreja da Inglaterra”, nunca foi reivindicada a infalibilidade em assuntos doutrinários para o rei (diferentemente do que acontece com o papado). Os documentos do anglicanismo fazem apelo às Escrituras como autoridade final em assuntos espirituais. Além disso, o rei apenas representa simbolicamente a unidade da igreja. A sua “chefia” é no campo institucional, não doutrinário. São os bispos primazes, principalmente o arcebispo da Cantuária, que definem a fé anglicana.
            Henrique VIII não fez a Reforma, mas separou de Roma a Igreja da Inglaterra. Isso abriu as portas para ações dos verdadeiros reformadores.
Para os anglicanos, a Igreja da Inglaterra não se separou do papado, mas, sim, se libertou dele. A Bretanha foi evangelizada por pregadores celtas que nada sabiam sobre o primado do bispo de Roma. Até o calendário religioso e a data de celebração da Páscoa dos bretões eram diferentes dos da Igreja Romana até o século VII. Foi no Sínodo de Whitby (663-664) que o rei de Northumbria impôs aos ingleses a submissão às sentenças do papa.
            Na Idade Média, a Inglaterra teve muitos movimentos que defendiam as doutrinas que, depois, foram sustentadas pelo protestantismo. Destacamos aquele liderado por John Wycliffe, para quem o papa era o próprio Anticristo. Também lembramos o franciscano Guilherme de Ockham como outro religioso inglês que questionou a autoridade que o papa reivindicava.


            Dr. Glauco Barreira Magalhães Filho
            Doutor Honoris Causa
Doutor em Teologia
            Doutor em Sociologia
            Livre-Docente em Filosofia
            Mestre em Direito
            Professor de Hermenêutica da Universidade Federal do Ceará
            Coordenador do Curso de Direito da Fametro
            Diretor do Instituto Pietista de Cultura




[1] Henrique VIII. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p. 15
[2] Henrique VIII. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p. 71-72
[3] Henrique VIII. São Paulo: Nova Cultural, 1998, p. 80

4 comentários:

  1. Li a narrativa como você sugeriu, o Rei Henrique VIII até me pareceu um bom sujeito na forma que você escreve, ao passo que fora, implantados mentiras em relação a Calvino, que sequer desejou a morte de Servet. Infelizmente vejo em você antes de tudo um anti católico, especialista eu digo. Essa raiz anti católica vem da reforma, vem do iluminismo e nos EUA é cultural, não sendo possível esperar qualquer atitude imparcial ( Phillip Jenkins. The New Anti-Catholicism: The Last Acceptable Prejudice. Oxford University Press, 2003. [S.l.: s.n.] Eu sempre tive muita curiosidade de entender como funciona o fundamento do entendimento protestante, e o porque a negação pela igreja histórica representada na sucessão apostólica. Eu passei a entender a partir de Calvino, na ideia de estado caído! A partir daí a razão humana é maculada, daí qualquer obra humana pode se tornar idolatria..nesse caso...a igreja composta por homens e as suas conclusões...é idolatria...Pois bem a questão é que esse receio da razão ataca a própria humanidade de Cristo...ou até mesmo a bíblia...não a Palavra..mais a Bíblia... ou seja, o conjunto de livros reunidos pela igreja que o senhor usa nos cultos...

    ResponderExcluir
  2. o senhor usa expressões anti católicas como igreja de Roma..no sentido que ela é apenas uma expressão territorial...enquanto deveria mencionar que a sede é em Roma ou então dentro da tradição Igreja que Santo Inácio de Antioquia já denominava católica...Faltou no texto o senhor mencionar quais eram os interesses dos papas... se eles queriam revolução... faltou o senhor mencionar a Oratio, de Richard Sampson para cortar o laço com "Roma"

    ResponderExcluir
  3. JCosta, pode ser pela minha "limitação" cultural ou cognitiva, mas não entendo nunca onde você quer chegar com os argumentos. Tudo me parece muito confuso. Talvez seja bom não perder mais o seu tempo comigo, pois quanto mais você fala mais confuso eu acho tudo que você diz. Abraço!

    ResponderExcluir
  4. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir