Prof. Glauco Barreira Magalhães Filho e Prof. Paulo Bonavides nos 110 anos da Faculdade de Direito da UFC
COSMOVISÃO E IMAGINÁRIO
O Imaginário corresponde ao “sem fundo” do ser
humano, ou seja, ao seu aspecto insondável. É por ele que ressentimos o mundo
de forma criadora.
O imaginário é
anterior à racionalidade e à imaginação, sendo a condição de possibilidade
tanto de uma como da outra. Ele se expressa pela razão (logos) e pelo
sentimento (pathos). Nele, encontramos um manancial criativo simbo-lógico
(simbólico e lógico). Desse modo, o imaginário não é “sufocado” pela
racionalidade, mas também não está justificado para agir de modo inconsequente.
A razão não pode existir sem a fundação no imaginário, enquanto o imaginário se
expressa por meio de determinações lógicas impostas pela razão. Até mesmo
quando o imaginário transcende a razão, ele tem “razões”. Como disse Pascal, há
razões no coração que razão não compreende.
A imaginação (segunda vertente do imaginário
ao lado da razão) é que dá significado às imagens. Ela revela as
potencialidades do ser humano para impregnar a realidade de sentido, ordenando
o caos das sensações. Quando Deus chamou a Adão para dar dome aos animais, ele
deu ao homem a prerrogativa de conferir sentido ao mundo. Obviamente, isso não
aconteceu de modo arbitrário, pois o homem, como sub-criador, teria que criar
sentido dentro do escopo da criação divina e não de modo antagônico a ela.
O imaginário representa uma abertura para a transcendência
ou para a “alteridade”. É o que permite o salto da natureza para a consciência.
Como a natureza não pode extravasar os seus próprios limites, Castor Bartolmé
Ruiz conclui:
“... Esse
salto qualitativo da natureza para a consciência extrapola qualquer forma de
evolução simplesmente natural e nos força a repensar a presença de uma ação
criadora além da mera evolução da consciência animal”.
É através do imaginário que atribuímos sentido as coisas e as religamos numa
rede significativa chamada de cosmovisão. Bartolomé Ruiz explica:
“A pessoa
se religa ao mundo por meio da rede de sentidos que constitui sua identidade. É
assim como transforma o caos das impressões sensoriais num cosmo de sentidos...
Ele configura o mundo natural dado como um cosmo de sentidos criados, uma
cosmovisão”.
Toda
cosmovisão presume um sistema metafísico. Segundo Dilthey, somente a metafísica
possibilita ao homem uma firme posição na realidade e uma meta objetiva a ser
seguida. Willhelm Dilthey também observa que todo sistema filosófico encerra
pressupostos indemonstráveis. Isso não significa que não se possa argumentar a
favor de um ou de outro, mas, sim, que essa argumentação visa à persuasão,
não à demonstração.
O “sem fundo” humano é o imaginário radical (de onde brotam a racionalidade e a
imaginação). Ele também pode ser chamado de coração (Pascal) ou o “eu” (Herman
Dooyeweerd). Como esse imaginário radical define a cosmovisão e as questões
últimas (quem somos, de onde viemos, para onde vamos), ele é necessariamente
religioso. Mircea Eliade diz que o “homem arcaico” é religioso (e simbólico) e
Georg Simmel fala de um sentimento radical de piedade que atribui sentido
transcendente a certas relações.
Herman
Dooyeweerd, jurista e filósofo holandês, explicou que o pensamento teórico
“está sempre relacionado ao eu, ao ego humano; e esse ego, como centro e
unidade radical de nossa existência e experiência total, é de natureza
religiosa. Assim, todo o conhecimento real encontra suporte de coerência no
conhecimento do absoluto, uma vez que o ego é o assento central da “imago
Dei'”. Para Dooyeweerd, ao deixar o homem de reconhecer o legítimo absoluto,
acabará absolutizando algum aspecto da realidade, reduzindo os outros aspectos
a condição de epifenômenos do aspecto absolutizado. Na sua opinião, as
principais forças teóricas que tem atuado no Ocidente para definir cosmovisões
são as dicotomias “forma-matéria” (Grécia clássica), “natureza-graça”
(catolicismo romano), “natureza-liberdade” (humanismo), bem como a tricotomia
“criação-queda-redenção” (protestantismo)[1].
Atualmente,
o pensamento pós-moderno é apresentado como o fim das grandes narrativas
(cosmovisões), mas isso é uma forma de imunizá-lo de refutações. Na verdade, o
pós-modernismo é um tipo cosmovisão, mas com a fraqueza de refutar a si mesma.
IMAGINÁRIO E MITO
A
“alteridade” do mundo exerce pressão sobre a força criadora da “psique” para
que se expresse na construção cultural de instituições sociais e identidades
pessoais. O poder objetivante do imaginário, entretanto, refreia a sua própria
potencialidade criadora, garantindo estabilidade e conservação.
Na
formação da identidade, atua tanto uma sublimação criadora que busca plenitude
num universo ilimitado como uma “repressão” (decorrente do princípio
realidade), garantindo a última o rosto ou identidade do sujeito histórico. Há
aqui o equilíbrio entre o “princípio do prazer” e “o princípio da realidade”.
O
termo grego “symbolon” significa a reunião de partes separadas (fraturadas)
numa nova unidade significativa. Ao conferir sentido às coisas, o homem realiza
a sua juntura simbólica com o mundo. Assim, não apenas explicamos o mundo de
modo racional, mas nos implicamos nele de modo criativo através do sentido que
atribuímos às coisas e as nossas práticas. Desse modo, nos mundanizamos
enquanto humanizamos o mundo.
O
simbólico é responsável pela integração do individual e do coletivo. É forma
cultural definida e abertura indefinida de sentido. Ele não é óculos que
distorce o real, mas o modo de acesso do homem ao mundo.
O simbolismo
transcende o signo, pois, usando-o como referência, também o molda
metaforicamente, relacionando-o a um universo maior. O simbólico, como elemento
de expressão do imaginário, tem estrutura paradoxal, pois transita entre os
espaços da consciência e da inconsciência.
A
alegoria envolve a relação de um símbolo com outros signos, interligando
significados e criando uma unidade narrativa. Símbolos e alegorias formam redes
narrativas que criam visões explicativas da realidade ou cosmovisões, as quais,
por sua vez, nos dão a estrutura mítica do mundo.
O
mito explica, mas não esgota o sentido do mundo. Está sempre aberto para
significados mais coerentes e de maior potencial explicativo. Notadamente, no
sentido aqui adotado, “mito” não implica falsidade ou alucinação.
A
estrutura de sentido criada pelo mito instaura o universo simbólico pelo qual
as pessoas e a sociedade constroem o real. No mito, temos teorias explicativas
que funcionam como forma simbólica de aproximação do real. Elas estão sempre
expostas ao princípio da falsificabilidade, o que permite que possam ser
superadas ou substituídas por formulações melhores ou mais verdadeiras.
Aquilo que é
descoberto pelo “logos”, bem como a existência humana, requerem um pano de
fundo que confira coerência e sentido. É nesse momento que se revela a dimensão
antropológica do mito. O imaginário se manifesta como símbolo e como “logos”,
necessitando dos dois para expressar-se e existir.
Pelo
exposto, vemos superada a concepção de mito que o associa a narrativas
pré-científicas de povos selvagens e integra-se o mito ao seio das formulações
científicas coerentes e verdadeiras. Assim, encontramos teorias
mítico-explicativas na física quântica, na teoria da relatividade, na física
subatômica, nos estudos do genoma humano, etc. Elaborações simbólicas funcionam
como paradigmas para definir conclusões racionais dentro dos modelos teóricos.
Em
relação ao passado, o mito funciona como sistema último de referência a partir
do qual a história se compreende. Em relação ao futuro, ele integra a categoria
da esperança.
Prof. Glauco Barreira Magalhães
Filho
[1]
Sendo calvinista, Dooyeweerd dirá que os três primeiros exemplos são formas
apóstatas do direcionamento religioso do “eu”, enquanto a tricotomia
“criação-queda-redenção” representa a orientação sã do ego religioso.
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